terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Sono Eterno

Eu não sou muito de tietagens, mas se tem um cara de quem eu sou fã, mesmo, que me faria gritar histericamente se o visse passando na rua, é o Raymond Chandler. Claro que parte da minha histeria seria por que ele está morto há mais de 50 anos, e seria bem esquisito vê-lo passando na rua.

O Sono Eterno é o primeiro romance "longa-metragem" do Chandler, e a primeira aparição do Philip Marlowe também - o detetive "durão", que, "no fundo", é "um sentimental" (palavras dele próprio) - que vinha sendo refinado nos contos, em outros personagens, ao longo de muitos anos. Vou falar um tremendo clichê agora, que vi escrito em algum lugar, mas que é a mais pura e tridestilada verdade: se Dashiell Hammett tem o crédito por ter inventado as histórias de detetive hardboiled, é do Marlowe o mérito de tê-las elevado à categoria de arte. Seus romances são cheios de nuances e subnuances, detalhes tão importantes à história quanto ao mistério em si, os personagens são pintados em diversos tons de cinza e não são estereotipados - se hoje, o detetive "durão mas sentimental" é um clichê, foi por que Chandler inventou este clichê.

Mas a história. Marlowe é contratado pelo General Sternwood, um velho entrevado, mas que já foi um osso bem duro de roer em seu tempo. Ele quer que o detetive investigue uma chantagem contra Carmen, sua filha mais nova, praticamente uma Paris Hilton dos anos 40, que não consegue sossegar a periquita. Vivian, sua outra filha, tem a certeza que Marlowe está investigando o desaparecimento de seu marido, Rusty Regan; ele não desmente. Seguindo a pista do chantagista, Arthur Geiger, descobre que ele aluga livros pornográficos (lembrem-se que naquele tempo não tinha redtube), tanto pelo lucro imediato quanto como investimento de longo prazo, para chantagear seus clientes depois. Seguindo-o até sua casa, ouve tiros; invade o local e descobre o corpo de Geiger com três balas, e Carmen, completamente nua e drogada, na cena do crime. Por mais que eu tenha prazer em estragar a leitura de vocês, o livro é tão complexo que eu não poderia resumi-lo sem reescrever a história toda, então deixo vocês por aqui. Mas já adianto que tem mais assassinatos, mais Carmen Sternwood pelada, gays e héteros dispostos a cometer crimes passionais, intervenções de um figurão do crime organizado, e que a verdadeira trama da história gira em torno do desaparecimento de Rusty Regan.

Tem dois filmes baseados no livro, um de 1946 e outro de 1978. Não tenho nenhuma intenção de ver o de 78, porque eu acho que todo mundo era feio nos anos 70. Falemos da versão de 46.
Apesar do original ser genial, e de ter o Humphrey Bogart e a Lauren Bacall como estrelas (o William Bonner e a Fatima Bernardes dos anos 40), o filme é muito, muito fraquinho. Parece um resumo mal-feito do livro para um trabalho de escola, a ação engasga, as situações são forçadas. No filme, Marlowe é muito, mas MUITO mais mulherengo do que nos livros, e olha que ele já é bem sem-vergonha no romance. A mulherada parece sob efeito de ferormônios hardcore na presença do cara, ou seja lá o que for; sei que se alguém engarrafar esse lance e vender vai ficar rico. Nos livros, pelo menos, ele ainda se dá ao trabalho de umas cantadas antes que elas saiam abrindo as pernas. E mesmo apesar disso, eles cortam toda a sacanagem do livro; a própria Carmen não tira a roupa em nenhum momento, a chantagem gira toda em torno das fotos dela benlôca de dorgas. Os livros pornográficos e a pederastia de Geiger não ficam nem subentendidos. A gente até entende, tinha o Hays Code e panz, mas ainda assim, a perversão entra em pontos cruciais da trama e é bem frustrante que o filme todo seja quase tão inocente quanto o Disney Channel.

Eu honestamente não recomendo o livro. Não se você tiver um emprego, família, uma casa pra cuidar ou qualquer coisa na vida que não possa ser negligenciada, porque você não vai querer parar de ler enquanto não terminar.

Um comentário:

  1. Caralho, rolou uma avalanche de lembranças do livro agora (minha memória é uma merda, mas nada que um bom empurrão não resolva). Realmente, as fotos da biscatinha nua e drogada orientam a trama, mas no filme isso não aparece. E também não conseguiram substituir esse elemento por algo à altura, o que tornou o filme mero espectro do livro. Se não me engano, é nesse livro que não é possível determinar quem matou um cara que não lembro quem é, e o próprio Chandler depois não soube explicar.
    Gostei muito do texto.

    ResponderExcluir