terça-feira, 26 de outubro de 2010

Lolita - Nabokov

Eu demorei para ler Lolita. Vi o filme muito antes, e, na real, detestei. Não sabia precisar se foi por que a história do tarado sujo com a vagaba juvenil me incomodava, ou se, pecado dos pecados, foi por que eu não sou lá muito fã de Kubrick. Enfim, o fato é que demorou muito tempo para eu encarar o volume, por que já tinha esse preconceito na cabeça, e oh boy I so was wrong.

Nabokov já sai deliciosamente bem com as deliciosas aliterações de um dos começos de livro mais citados entre os começos de livro da história dos começos de livro - Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta (em inglês é mais gostoso ;) - e já vem logo depois com aquele spoiler maneiro do final do livro - só um assassino para ter um estilo tão floreado.

Humbert Humbert, expatriado francês e pedófilo contumaz, vai parar numa cidadezinha da Nova Inglaterra, depois de alguns capítulos dedicados a sua vida pré-Lolita. Hospedando-se na casa de uma viúva, Charlotte, se apaixona à primeira vista por sua filha, Dolores Haze, uma guria de doze anos. Uma guria de doze anos que era a própria imagem de Annabel Lee, sua primeira paixão. Ele criança, ela criança, num principado à beira mar, - a referência ao Poe é tão óbvia que é covardia - tentando acalmar a fúria dos hormônios longe da vista dos grandes, sem conseguir; e ela morrendo um ano depois, cristalizando sua imagem no coração de Hubert, que agora procura uma Annabel Lee em todas as amantes que encontra. E o filme, senhores, o filme omite vergonhosamente esse background poético da perversão do nosso "herói".

O resto, o filme resume razoavelmente. Humbert se casa com a viúva Haze, para ficar perto de Lolita; Charlotte encontra o diário dele, pira, corre da casa e é atropelada. Aí vem viagem pelos EUA - onde viram amantes -, a mudança para outra cidade, a fuga de Lolita. O reencontro, o assassinato. Ok. Ok, mas...

Primeiro, que o filme ignora sumariamente todo o delicioso, doentemente bem-humorado diálogo interior de Humbert Humbert. Que se corte alguma coisa da história para espremer um livro de 300 páginas em umas duas horas de filme, é compreensível, mas a coisa foi longe demais. Esquecer a história da Annabel Lee foi um pecado mais feio do que a fornicação com pré-adolescentes. Pior ainda do que isso tudo foi o jeito de contar a história (ao contrário do livro, que é bem sensato), que dá a entender que foi a mini-vagaba Lolita quem seduziu o velho e fraco Humbert, que foi encantado, manipulado e transformado em assassino por essa pequena Lilith mascadora de chiclete. A moral da história, senhores, é que se você tem uma vagina, a culpa vai ser sempre sua, ainda que você seja uma criança.

P.S.: As imagens que ilustram o post são do Balthus, esse polonês tarado. Tem uma galeria muito bacana com 150 capas de Lolita aqui.
P.P.S: O filme de que falo é o primeiro, de 1962, do Kubrick. Tem uma versão recente, de 98, com uns fodões tipo o Jeremy Irons e a Dominique Swain, mas cheira a blockbuster e eu não me animo a ver. Alguém?

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

EXTRA - 1001 Livros para morrer antes de ler



Vocês sabem, uma imagem vale mais que mil palavras, etc. Mas um blog, vale um livro? Mil livros? Um blog ruim vale sequer um livro bom? E um blog bom, vale quantos livros ruins? A quantas anda a cotação livro-blog no mercado nesses tempos que juram a morte da mídia impressa, ainda que ela pareça gozar de excelente saúde?

Um bom blog que fala de livros vale pelo menos um humilde postículo em outro blog que fala de livros. Conheçam, senhores, o fantabuloso 1001 Livros para morrer antes de ler, uma extraordincrível seleção de obras que deveriam permanecer inéditas, sob a curadoria dos espetaculindos @exucaveiracover, @koalix e @mrguavaman. Vale cinco joinhas na escala Literalmenta de superbacanidade.

Créditos da foto: Sasha Grey disseminando a cultura, via tumblr do jorai (NSFW)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Pastoral Americana - Philip Roth

Philip Roth é outra descoberta bem recente para mim, e eu lamento muito não tê-lo conhecido antes. O primeiro que li dele, esse ano ainda, foi o sensacional Casei com um Comunista, graças ao meu fantástico hábito de escolher o livro pela capa (que, até agora, nunca me decepcionou - acho que os editores realmente separam os melhores capistas para os melhores livros). Um ou dois meses atrás peguei o Pastoral Americana, e gente. Gente. Nem vou comentar muito, vamos à história.

O narrador é Nathan Zuckerman, escritor judeu de Newark, um alter-ego do próprio autor (que aparece em vários de seus livros, inclusive o Casei com um Comunista). O protagonista, Seymour "Sueco" Levov, é um homem que vive, na prática, o sonho americano: é bonito, rico, popular, se casa com uma miss, tem uma filhinha e mora numa casa incrível. E eles são felizes para sempre, você me pergunta? Nem de longe, leitor.

O romance começa com Zuckerman reencontrando o Sueco, em meados dos anos 90. O cara mais popular de seu tempo de escola, seu primeiro ídolo, estava casado pela segunda vez, tinha três filhos, e era um chato de galochas. Aquele tipo de pessoa que parece não ter nada especial: fala dos filhos, da sua fábrica de luvas, um pouco de beisebol e só. Nathan tem a impressão que a vida toda desse cara foi um saco, mas guarda para si. Alguns anos depois, num encontro de ex-alunos de sua antiga escola em Newark, o narrador se encontra com Jerry, irmão mais novo de Seymour, que na verdade mora na Flórida, e só decidiu ir ao encontro por que tinha mesmo vindo para o norte, para o funeral de seu irmão. Numa explosão - entre sentimentos de raiva, mágoa, rancor - ele dá a real: vida chata, a do Sueco? De jeito nenhum. Ele casou com a Miss New Jersey e tinha uma filha terrorista.

Zuckerman reconstrói, então, a vida de Levov, e nos conta a história: a adolescência, a fama na escola, o pai rígido; o período no exército, a faculdade, o namoro com Dawn, o casamento; a filha, os primeiros anos de absoluta felicidade; o começo do fim. A pequena Merry, adolescente, teimosa e gaga, muito mais revoltada com seus próprios pais do que com o "sistema"; o atentado; a fuga. As pistas falsas de Rita Cohen, os anos sem notícia da menina, a insanidade e recuperação de Dawn. O reencontro com Merry, e a decepção.

A ação se passa principalmente no fim dos anos 60 e começo dos 70. A bomba com que a garota explode uma agência de correio, matando um civil, é um protesto contra a guerra do Vietnã. Durante os cinco anos cuidando da esposa louca e esperando pela volta de Merry, há os motins de Newark, que destroem boa parte da cidade e por pouco não atingem a fábrica do Sueco; o julgamento de Angela Davis; Watergate e  Garganta Profunda, tanto o filme quanto o histórico delator. O livro é excelente como crônica desse momento da História dos Estados Unidos, mas é como literatura, e boa literatura, que deve ser lido. Eu não hesitaria em colocá-lo como o melhor livro que li esse ano.

P. S.: Os leitores vão me desculpar o atraso de um dia na postagem, é que ontem eu estava muito ocupada fazendo uma coisa importantíssima ;)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O Último Mamífero do Martinelli - Marcos Rey

Vocês entenderam direitinho, sim. Eu disse Marcos Rey, o cara da Coleção Vaga-Lume. Não me olha desse jeito. A minha geração toda (e, creio, a anterior e a posterior também) não aprendeu a gostar de ler com o Machadão, nem com o abominável José de Alencar, que a gente só lia por que nos obrigavam. As palavras cabeludas, as frases cheias de idas e voltas barrocas, como é que um adolescente sem base e sem vocabulário não acharia isso chato? Mas a maioria dos meus colegas, eu me lembro, até curtia quando caía na prova algum livrinho da Vaga-Lume. Eram todos curtos, quase todos escritos em linguagem direta e atual, exceto por alguns anacronismos (Éramos Seis? Meu Pé de Laranja Lima? Pô!). É graças a essa coleção que, nos meus longos doze anos de vida, eu pude dizer pela primeira vez que tinha um autor favorito: Marcos Rey. Um autor e um gênero, aliás: já naquela época eu podia afirmar com toda certeza que adorava livros policiais, e ainda amo. Conheci outros autores e fui formando meu cânone pessoal ao longo do tempo, mas sempre sobrou um cantinho no meu coração para os livrinhos acessíveis e gostosos de ler do Marcos Rey. Como Monteiro Lobato, ele também teve uma vasta produção de literatura "séria", por assim dizer, mas ficou mesmo marcado pelos infanto-juvenis. O Último Mamífero do Martinelli foi o único livro adulto dele que eu cheguei a ler, e um dos últimos, de 1995.

A novela se passa na época da ditadura. O protagonista é um perseguido político, mas isto, na trama, é só um detalhe que justifica as circunstâncias. Em vez de cruzar a fronteira ou se esconder no interior, ele procura abrigo no Martinelli, o primeiro arranha-céu de São Paulo, então abandonado. Ele se torna uma espécie de arqueólogo urbano enquanto vasculha o prédio em busca de coisas para vender; uma inscrição num banheiro, o papel de parede em um boudoir, um buraco de bala, um piano - cada um desses vestígios conta uma história, que ele reconstrói. O livro é formado desses pequenos contos de um passado possível, misturados à sua própria fuga e batalha por sobreviver. Aos poucos, as histórias do prédio e a realidade vão se misturando, e ele começa a confundir seu mundo ficcional com o mundo lá fora, até culminar num final surreal, insano - que eu não vou contar, é evidente.

É curtinho (por isso novela, e não romance: formalidades de tamanho), você lê de uma sentada só (opa). Não anda muito fácil de achar, mas não está esgotado; em sebos e algumas livrarias online ele ainda está no estoque. Se Marcos Rey te traz boas memórias de um tempo em que as notas eram sua maior preocupação na vida, você vai curtir, e mesmo sem o argumento da nostalgia, é um bom livro. Vale a pena.

sábado, 16 de outubro de 2010

Tapa na cara da sociedade (dos poetas mortos)

Em coisa de um mês de blog vocês já me viram falando "mal" do Dostoievsky (saúde), do Joyce, da Pagu, da Cecília Meirelles, do Garcia Marquez, e a gente nem tocou no assunto do Saramago e da Clarição. Nego aqui já deve estar achando que eu sou ICONOCLASTA, e/ou que eu tou falando tudo isso só pra CAUSAR. Juro que não, gente.

Eu tenho respeito pela cânone da literatura. Juro. Se um autor conseguiu ultrapassar o filtro do tempo e é considerado um pilar, ele tem que ter algum motivo pra estar lá. Mas pô, eu me dou o direito de não gostar ou achar chato. A maioria dos nego metido a culturete não se atreve a admitir que não gostou de qualquer coisa dos autores do cânone, de medo de parecer ignorante. A gente não precisa babar ovo, também.

Peguemos, por exemplo, a minha lendária birra com o James Joyce. 90% do meu problema com ele é que eu não consigo ler esse desgramado.

E até ela consegue, meu deus!

Agora, estimado leitor, olha no meu olho e conta a verdade pra mim: você consegue? Dubliners não vale, é texto linear. A partir do Retrato do Artista, quantos você leu, hein? HEIN?
As estatísticas do instituto datadani comprovam: a partir do momento que você assume que levou 5 anos pra ler o Retrato e mal passou da capa nos outros, as pessoas começam a admitir que nunca leram. É um lance meio A Roupa Nova do Rei, precisa alguém gritar que sua majestade tá peladão, ali. Eu conheci, de verdade, uma meia dúzia que chegou até o fim do Retrato (6,8 pontos na escala James Joyce de ininteligibilidade), umas duas pessoas que leram Ulysses (8,1 pontos), a duras penas, e NENHUMA que leu o Finnegans Wake (o grau máximo da escala, com 10 pontos, somente ultrapassado por textos jurídicos e letras do Djavan).

Perceba que, fora chamá-lo de desgramado, eu não estou falando mal do Joyce. Tou dizendo que ele é difícil, complicado. Tou dizendo que a leitura é chata, arrastada. Tou dizendo que nem a própria mulher leu os livros dele, por que eu deveria ser OBRIGADA a ler? Agora, fatão: sem Joyce nós provavelmente não teríamos tido Guimarães Rosa, e sem Guimarães Rosa eu não teria essa liberdade de escrever misturando a segunda e a terceira pessoas, por exemplo. A importância de uma obra do cânone transcende a obra em si: cada autor, cada livro que trouxe uma inovação abriu uma porta que nós, mortais, provavelmente passaríamos a vida sem enxergar. Eu sou grata a Joyce por ter aberto uma boa dúzia de portas, mas isso não me impede de ainda ter vontade de dar com uma tábua de compensado na cabeça dele.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Centauro no Jardim - Scliar

Sério? O Moacyr Scliar, aqui na minha very own humble opinion, talvez seja o maior escritor brasileiro vivo (e só fico nesse "talvez" por que eu não manjo tanto assim dos contemporâneos, então posso estar deixando alguém passar aí). Eu sempre gostei à beça dos contos dele, acho leves, bem escritos, bem humorados. E os romances não deixam por menos, apesar de eu não ter lido tantos. Nos "longa-metragens" ele tem tempo de encher parágrafos e parágrafos com descrições riquíssimas de cenários, de desenvolver o diálogo interno dos personagens, e a leveza e o bom humor permanecem

O Centauro no Jardim é de 1980, e é um dos mais conhecidos dele. Chegou a ser traduzido pra várias línguas, até. O livro é narrado em primeira pessoa pelo caçula de uma familia judia russa, que veio se instalar no Rio Grande do Sul fugindo dos pogroms. Quando eu peguei pra ler, achava que o centauro do título era metafórico, mas não: o protagonista é um guri que nasceu meio potrilho, de verdade.

Ele passa a infância e a adolescência mais ou menos como um garoto deficiente daquela época sem melindres politicamente corretos passaria: escondido na fazenda, com vergonha, medo da reação do povo. O pai, as irmãs, o enchem de atenção como forma de compensar pela sua "deficiência"; o irmão morre de ciúmes. Entre a fazenda e a mudança para Porto Alegre - provocada por um vizinho, que descobriu o segredo, e justificada com um "na cidade ninguém liga para nada" - ele vai se tornando um garoto introvertido, estudioso, sonhador. Chega a se apaixonar, como é possivel prever; platonicamente, como é impossível evitar. Uma garota da vizinhança que mora numa casa riquíssima e tem um amante, e que ele espia, voyeur, pelo telescópio. Quando descobre que a moça tinha um amante, pira e foge de casa.

Guedali - pois é esse o nome do nosso herói - vaga pelos pampas, sem rumo. Ele passa fome e frio, mas isso rende umas descrições maravilhosas da paisagem dos sul, então dane-se se ele tá sofrendo ;). Se você é um sucker por descrições detalhadas e bem feitas, como eu, vai gostar muito. Ele passa um breve interlúdio com um circo - dizia que as patas eram uma fantasia, que tinha um irmão seu atrás, que nunca saía por que era deformado. Foge quando a domadora hipersexuada percebe enfim que ele é meio cavalo, e não no bom sentido. Nas suas errâncias, se depara com o amor na forma de uma centaura (sim!) em fuga. É Tita, correndo do ataque (incestuoso? bestial?) de seu pai de criação. Mata o cavaleiro negro, salva a princesa, que será sua para sempre - mas a história mal começou. Aliás, há vários pontos em que a história poderia terminar, e um autor mais impaciente poderia ter usado a mesma premissa pra um romance bem menos profundo e muito mais curto. Há uma cirurgia para extirpar o cavalo, há a mudança para São Paulo, há o nascimento dos gêmeos, e eu poderia também contar sobre o terceiro centauro ou sobre a esfinge, mas estragaria a história. Só conto que a coisa permanece tensa até o fim, e mesmo no fim. E mais não digo.

Duas coisas dignas de nota. Eu realmente não entendi o lance do cavalo com asas, citado umas 3 ou 4 vezes no correr do livro, mas isso pode ser caso pra reler com mais um pouco de atenção. Outra coisa que eu achei meio fora de contexto, talvez, foi um excesso de referências a sexo - e, olha, cês sabem que eu curto uma sacanagem, mas achei muita coisa desnecessária. Não sei, a coisa pode ter o seu papel na hisória - o autor bate muito na tecla do instinto, dessa energia sexual do centauro. E também pode ser por que é um livro escrito nos anos 70, então né. Se algum de vocês o leu e tem algo a dizer sobre essas questões, por favor, opine, por que é pra isso que serve esse blog. De qualquer maneira, é um livro que eu quero revisitar com calma num futuro.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Orlando - Woolf

Virginia Woolf é uma dessas autoras de que se conhece mais da vida do que da obra. Eu mesma, já li em tantos lugares tantos detalhes sórdidos da biografia dela, mas livro, mesmo, que é bom, só tive coragem de ler um. E por desencargo de consciência.

Orlando foi uma leitura arrastada, mas eu segurei até o fim. Meu critério para desistir ou não de uma obra considera três fatores: a) o livro é ruim (mal escrito, história besta, etc)?; b) é tão ou mais difícil que Ulysses?; c) é, pelo menos, mais curto que Ulysses? O livro é bom; é um pouquinho mais fácil que Ulysses, marcando 7,1 pontos na escala James Joyce de ininteligibilidade; e é, aleluia, mais curto. Se bem que, mais longo que Ulysses, acho que só o Em Busca do Tempo Perdido e o Dicionário Houaiss. Além do que, Orlando usa 250 páginas para descrever mais de três séculos, enquanto Ulysses leva 800 pra descrever um único dia, o que me leva a crer que Joyce provavelmente seria um puta flooder no twitter.

Orlando, nosso protagonista, é um nobre inglês portador da abominável doença da literatura. Na história ele vive do século XVII ao XX e isso soa como uma coisa absolutamente normal (vai vendo). Durante sua longa e breve vida (porque, no fim do livro, em 1928, a personagem só tem 36 anos - vai vendo), ele foi mordomo e amante da rainha Elizabeth, se apaixona e é abandonado por uma princesa russa, por desgosto se isola da corte, vai como embaixador para Constantinopla pra fugir de uma stalker, vira mulher, foge com os ciganos e... Você disse "vira mulher", Dani? Falei, sim. Então, ela foge com os ciganos, volta pra Inglaterra e... Mas explica direito esse lance, Dani. Já vou. Volta pra inglaterra e começa a conviver com os luminares da literatura do tempo, Pope, Addison, Swift, mas Dani, já vou, porra!, casa com um capitão explorador, compra uma bicicleta, tem um filho e publica um poema. Ufa.

Aquele lance de virar mulher (Já não era sem tempo. Cala a boca!). Acontece no meio da história, durante uma revolta na Turquia. Do nada. Orlando dorme (homem) por sete dias, há um interlúdio com três representações mitológicas da Virtude, aí ela acorda mulher. Acabou. Não é tão simples, claro, há toda uma implicação na história. Sendo mulher e tendo sido homem, ela tem toda a experiência e o jogo de sensibilidades de ambos os sexos. Mas a galera toda no livro trata o fato como se fosse grandes bosta. Pois é.

Mais importante que o lance transformista é o tal poema que ela publica no fim do livro, já no século XX. Orlando, como eu disse, sempre foi uma vítima dessa doença que é a literatura (Woolf usa exatamente o termo "doença"). Começa lendo, depois cai na desgraça de escrever; queima toda a sua produção depois que Nick Greene, um escritor da época elisabetana, tira um coco com sua cara. Tudo, exceto um poema chamado O Carvalho, a primeira coisa que escreveu e que vai editando no decorrer dos séculos. No século XX, o mesmo Nick Greene (é), agora um aristocrático professor de literatura, lê a obra e quase obriga Orlando a publicá-la. O episódio do poema e o próprio carvalho, a árvore, devem ser uma metáfora pro aprendizado, pra vida, pra literatura, yadda yadda yadda. Eu deixo isso pra quem entende. Prefiro só achar bonitinho.

Orlando, pelo que me informaram, é um dos livros mais acessíveis da Woolf, o que me motivou fortemente a não procurar mais nenhum dela. É semi-biográfico, baseado na vida de uma das suas amantes e, dá pra perceber, na sua própria. A tradução que eu li, da Cecília Meireles (nem sei se tem outra), tem um ranço de Cecília Meireles. Não gosto, mas sou obrigada a admitir que traduzindo até que ela não funciona assim tão mal. Ela tem o domínio da língua, isso é um fato incontestável, mas eu a acho tremendamente babaca e não há nada que se possa fazer a respeito. Agora, usando esse domínio da língua a serviço das palavras não-babacas de outra pessoa, a coisa flui muito bem.
Um dos meus objetivos de vida é me aposentar (ou ser presa?) pra ter tempo de ler com calma os originais de algumas obras que eu acho fodas (tanto no sentido de "do caralho" quanto no sentido de "difícil pra caralho"). Orlando é uma delas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Dias na Birmânia - Orwell

Li Revolução dos Bichos, do Orwell, quando ainda era criança. Doze anos, acho, começo dos anos noventa, exatamente quando o império descrito no livro acabava de cair. E, na época, eu ainda não entendia nada, mal tinha aprendido a História da qual a história era a metáfora, mas não consegui deixar de me impressionar com o relato de poder, crueldade e traição. Era um dos primeiros livros "sérios", "adultos", que eu lia.

Devo ter relido uma vez ou outra, no meu tempo de adolescente esquerdista, mas foi com olhos tendenciosos, procurando ali alguma bobagem em defesa do trotskismo. Algum tempo depois, emprestei meu Animal Farm para alguém, e nunca mais a vi. Em 2003, achei uma edição baratinha, de bolso, e pela nostalgia, comprei. Reli. Me lembrava de tudo, absolutamente tudo, cada palavra. Alguns trechos me vinham inteiros de volta, antes que eu terminasse de ler. Eu não tinha noção do quanto aquele livro havia me marcado. Por essa época eu também já tinha lido o 1984, e não tive dúvidas, então, de que Orwell era um dos meus autores preferidos.

Esquisito era que de um dos meus autores preferidos, até duas semanas atrás, eu só tivesse lido dois livros. Decidi corrigir isso, começando pelo Dias na Birmânia, primeiro livro de ficção da carreira dele. O romance foi escrito com todo o conhecimento de causa de quem havia passado cinco anos de sua juventude servindo ao Império Britânico nas Índias. As cores riquíssimas com que ele pinta as florestas tropicais, as danças, as roupas e os costumes locais certamente ajudaram muito nas vendas, afinal a galera curte muito um exotismo. Como se a história não fosse boa, também.

A narrativa começa com U Po Kyin, um magistrado corrupto, conspirando contra o Dr. Veraswami, um alto funcionário local. Ele nem tem nada pessoal contra o médico, só quer mesmo derrubar o prestígio dele para aumentar o próprio. Veraswami, por acaso, é o melhor amigos de John Flory, e essa ligação com um homem branco é a única proteção que ele tem. Mas não ajuda muito, já que nosso "herói", funcionário de uma madeireira inglesa servindo em Mianmar, é um puto loser. O cara é um dos poucos pukka sahibs nas Índias e o único na cidade que tem idéias um pouquinho mais liberais e não tem preconceito com os nativos, mas belas bosta, se por qualquer pressão dos colegas ele se alinha sempre do lado dos ingleses.
A coisa piora quando Elizabeth chega a cidade. A garota é uma espera-marido sem vintém, esnobe e metida, e já chega perfeitamente aclimatada à sociedade local. Ele se apaixona, talvez não por ela, mas pela esperança que ela representa, a última que tem de levar uma vida minimamente normal (afinal, ela é provavelmente a única moça branca casadoira num raio de uns 100 km). Aí, você vê. O cara é contra o imperialismo, apaixonado pelo país, mas fica sempre do lado dos brancos, faz questão de casar com uma mulher branca, não hesita em deixar de lado seu melhor amigo indiano só para não perder o prestígio entre os brancos. O cara é um puto loser, eu avisei. Ainda assim, é um livro sensacional, não apenas como romance, mas pelo valor histórico. Ele é um relato de primeira mão de como as coisas eram de verdade nas colônias britânicas, até o começo do século passado.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Breakfast at Tiffany's - Capote

Eu detesto essa veadagem intelectual de falar sempre que "o livro é melhor que o filme". São linguagens muito diferentes, é como comparar bagres com bicicletas. Tem casos em que o livro é mais gostoso de ler, tem casos que o filme flui melhor, casos em que o livro é chatíssimo e casos em que o filme é um insulto à memória do autor. 

O caso, no caso, é de um livro e um filme que são ambos absurdamente bons e incrivelmente diferentes, e ainda assim, não se pode falar que a adaptação não foi fiel ao livro. Se você viu o filme, vale muito a pena procurar o livro, e se, caso improvável, você só leu o livro, por que tem medo de se frustrar com a adaptação, vá ver o filme. Os dois se passam em épocas distintas, com personagens diferentes e até finais vários, mas se você destilar ambos até o ponto em que não há mais nada o que extrair, a essência é a mesma. E o nome da essência é Holly Golightly.

O filme se passa nos anos 60, e o livro, no pós guerra, mas a história é mais ou menos a mesma. Holly Golightly é uma garota sem passado que frequenta a High Society de Manhattan. O cara que ela chama de Fred, um jovem escritor, se muda para o mesmo prédio e começa a conviver com aquele mundo maluco em que ela vive. No filme, "Fred" é um desses escritores que não escrevem, e vive às custas da amante rica; no livro, ele é simplesmente um escritor iniciante e pobre como tal. Ele se apaixona, obviamente, e ela o trata como o irmãozinho mais novo que abandonou para vir para a cidade grande. Eventualmente, descobre-se o passado de Holly quando o marido com quem ela casou ainda adolescente, no interior, vem implorar que ela volte. E mais não conto, vão correr atrás.

Só uma coisinha eu digo, por que tem louco que ainda interpreta assim: no livro ou no filme, Holly NÃO é garota de programa. Tanto que logo no começo (de ambos, livro e filme) ela aparece fugindo de um cara que acha que tem "direitos" por que pagou o jantar. Fora a grana do mafioso Sally Tomato, ela vive do dinheiro que dão para ela dar de gorjeta no toalete e para o táxi; os caras ricos com quem ela sai são normalmente bem generosos. Estou esclarecendo esse ponto por que a gente chega a ver resenhas sérias que dizem que a Holly é puta de luxo. Não que haja algo de errado com as putas. Mas Holly não é puta.

Truman Capote é uma descoberta recente para mim, e se tornou rapidinho um dos meus autores preferidos. O cara tem uma precisão de lapidador com as palavras, não tem uma vírgula fora de lugar em cada coisa que escreve. Recomendo muito, inclusive, ler no original e em voz alta, se puder. Falo sério; ouça, por exemplo, esse áudio de A Christmas Memory, meu conto preferido dele e candidato sério a ser meu conto preferido NO UNIVERSO. Você pode não entender uma palavra, mas ainda assim, soa maravilhoso.