domingo, 19 de setembro de 2010

King Shelter, o alter-ego policial de Pagu

Esse ano comemora-se o centenário de Pagu, a Patrícia Galvão, conhecida como "musa do modernismo". O título, eu acho, se deve muito mais ao seu bocão pintado de vermelho e à sua atitude punk do que à sua obra, esparsa e pouco consistente. Além do que, quanta gente você conhece que leu Pagu? Você, amigo leitor, olha no meu olho e não mente, VOCÊ já leu alguma coisa da Pagu?

Dando a real, eu mesma só bati o olho em meia dúzia de poemas aqui e ali, talvez um ou outro texto em prosa, mas nunca me animei a ler, por exemplo, o famigerado Parque Industrial, de 1933, dito como "primeiro romance proletário brasileiro". O critério para estabelecer este como "primeiro", aparentemente, era que necessariamente se falasse de operários de fábrica e só de operários de fábrica, e que fosse um romance, já que ignoraram sumariamente os excelentes contos do Brás, Bexiga e Barra Funda, de 1928, e toda a tradição realista brasileira, que tem protagonistas pobres desde mil oitocentos e tralalá. E não vou nem mencionar o Memórias de um Sargento de Milícias, primeiro romance do malandro carioca, escrito lá atrás em 1853. Talvez a questão não seja a classe, mas a consciência de classe, e nesse caso esse é definitivamente o primeiro romance comunista brasileiro. Mas eu diria que os proletários estão melhor representados em livros anteriores.

Enfim. Mérito à parte, outro dia desses eu vi ali na Mario de Andrade (a biblioteca central de São Paulo) uma estante separada só com livros da Pagu. Aliás, já que tocamos no assunto, vocês já foram à Mário de Andrade depois da reforma? Reabriram a circulante agora, e tá uma coisinha linda de deus. Mobília nova, mais iluminação, bibliotecárias gatchênhas (juro, pelo menos duas, e olha que eu nem curto muito a fruta)... Logo na entrada tem algumas estantes - displays talvez fosse um termo melhor - com alguns livros organizados por tema, tipo vestibular, ganhadores do prêmio X, etc. E nessas, resgatando o assunto, tinha uns livros da e sobre a Pagu, por causa do centenário e panz. Eu passei os olhos sem grande interesse, até topar com um título que, apesar da capa discreta, saltava aos olhos: Safra Macabra.

O bicho parecia completamente deslocado ali, entre títulos que evocavam a classe operária, o feminismo e outras pataquadas politicamente corretas. Segundo o que as orelhas me contaram, eram meia dúzia de contos escritos a toque de caixa e a toque de cash, publicados lá atrás nos anos 40 numa revista chamada Detective, editada por ninguém menos que Nelson Rodrigues - ele mesmo, o monstro, o chauvinista, o reacionário. É difícil imaginar alguém mais estranho ao mundo de Pagu do que o anticomunista, o machista Nelson Rodrigues, o cara que seu ex-marido, Oswald de Andrade, chamava de "pervertido mal-educado". Eu nem vou comentar sobre a parte do "pervertido" e a suposta liberação sexual que o modernismo pregava, por que isso dava assunto pra todo um novo blog inteiro. Nelsão, pelo menos, era honesto consigo mesmo. Pagu e aquela galera, na real, eram um dos motivos que fazia Rodrigues apoiar a ditadura; toda essa a intelligentsia brasileira era da classe dominante, e ele não conseguia acreditar em qualquer bem que eles pudessem fazer aos pobres de verdade.

Não estou aqui para delatar a contradição alheia, apesar disso me dar certo prazer. As pessoas são múltiplas, são formadas por diversas camadas complexas, alimentam crenças que se chocam entre si. Isso é natural. Não chamem de hipocrisia. 
Não falo a todos os meus leitores, claro; tenho certeza que muitos de vocês são adultos e bem conscientes, e a maior parte de vocês provavelmente nem liga muito pra política. Falo em especial a você, jovem cidadão que me lê agora. Você que já deve estar querendo me bater. Você que tem sido bem alimentado com alguma ideologia de esquerda, socialismo, amarquismo, whatever, e curte muito apontar tudo o que está errado com a humanidade, apontar os defeitos e as supostas hipocrisias dos outros. Seus heróis também se contradiziam. Eles também tinham que "se vender" em troca de um mínimo de condições para continuar vivendo em sociedade, e esse mínimo varia conforme a zona de conforto de cada um. Uns poucos talvez tenham conseguido manter absoluta coerência entre suas crenças e sua vida, e ao mesmo tempo manter o convívio em sociedade, necessário à propagação das suas idéias; eu só consigo me lembrar de Gandhi, na real, e olhe lá.


Enfim. Voltemos ao livro.

Os contos. O prefácio dizia que havia muita influência de Edgar Wallace, mas como tudo o que eu conheço dele é o King Kong, realmente não sei dizer. Pelo menos metade deles é estrelada por Cassira A. Ducrot, um jovem detetive da Sureté francesa, o Dupin da Pagu. A grande maioria se passa na velha e nobre Europa, entre castelos, casas de campo e cafés chiques em Paris, que Pagu, como aristocrata paulistana bem-nascida que era, conhecia muito bem e adorava. Há exotismo oriental, armas misteriosas, personagens estranhos, o pacote completo. As histórias puxam um pouco para o gênero horror, sem deixar de ser policiais. O linguajar é um pouquinho pedante demais pra me agradar, e a autora talvez se perca muito em descrições detalhadas, mas nada disso estraga o ritmo. Vale como curiosidade histórica, eu diria, e se você prefere, digamos Agatha Christie a Raymond Chandler. Se o amigo leitor tem um tempo para leitura muito limitado, e/ou se detesta esse estilo policial fantasioso, eu não recomendo não.


Tá aí. Em seis parágrafos, eu consegui escrever um inteiro sobre o livro em si. Objetividade: tinha, mas acabou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário