quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Travessuras da menina má


Você sabe aquele lance de escolher o livro pela capa? Pois é, eu pratico. Ainda não tinha lido nada do Vargas Llosa, não sabia por onde começar, e vi essa capa sexy me chamando ali na estante da biblioteca... Estava procurando uma leitura mais leve pra me distrair do Outono do Patriarca (que marca 8,4 pontos na escala James Joyce de ininteligibilidade), e agradeci às graças e à fortuna quando abri as primeiras páginas e dei de cara com texto linear. A gente aprende a dar valor às pequenas coisas quando se vê privado delas.

Basicamente, a história conta do amor de Ricardo Somocurcio, apenas um rapaz latino-americano cuja única ambição é morar em Paris, com a niña mala do título, ao longo de várias décadas e metade do mundo conhecido. Falar a verdade pra vocês, a princípio achei o livro fraco. Nos primeiros capítulos, o protagonista não é muito mais que um otário apaixonado e besta, do tipo que merece ser pisado por mulher, e a niña mala não parece passar de uma femme fatale padrão, linda e egocêntrica. Quando, no terceiro capítulo, o melhor amigo de Ricardo morre em decorrência da AIDS (isso em 73-75, quando a coisa toda mal havia sido descoberta), eu decidi que deveria ler o livro não pela história, mas pelo histórico. E daí comecei realmente a curtir. Vejam vocês, o guri Somocurcio passa por e participa de basicamente tudo o que aconteceu de importante em seu país natal e no mundo, dos anos 60 aos 80 - a tentativa de revolução socialista no Peru, o maio de 68 na França, até a descoberta do HIV. O engraçado é que justamente quando eu decidi que deveria ler a coisa como um romance histórico, ele começa a me interessar como um romance romance, também. A guria má começa a ser desvendada, deixa de ser uma casquinha superficial e se mostra enfim como alguém que pode não ter razão, mas teve todo motivo pra ser como é. E Ricardo, com a idade, vai deixando, enfim, de ser tão otário, mesmo que ainda irremediavelmente apaixonado por ela. Eu talvez gostaria mais se a história terminasse com o final feliz do penúltimo capítulo, mas o livro certamente não seria tão bom se não fosse o anticlímax do último. Que eu prometo que não vou contar, por mais que queira. E há de se relevar meu primeiro julgamento, provavelmente muito influenciado por eu ter saído de um texto muito denso - ler o Outono do Patriarca é meio como andar num oceano de mingau de aveia.

Enfim. Não sei se foi uma boa escolha para me introduzir ao autor; Travessuras é um livro recente, de 2006, e segundo o próprio Vargas Llosa, é seu primeiro romance de amor. Mas é uma história bacana, colorida, com partes divertidas, momentos sexies, e trechos de fazer a gente chorar que nem bobo. Vale bastante a pena.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Continental Op

Bueno, eu disse aí embaixo que Dashiell Hammett merecia o crédito por ter inventado o vero conceito do detetive hardboiled. Na real, o primeirão no negócio foi Carroll John Daly, com o personagem Race Williams, mas a coisa só foi ficar popular mesmo com Hammett ao longo da década de 20 e da seguinte.

Os contos do Continental Op foram publicados na Black Mask, a histórica revista de literatura policial que inspirou o filme Pulp Fiction. O autor sabia muito bem do que estava falando: combateu nas duas guerras mundiais e trabalhou como detetive por muitos anos, e provavelmente viu mais cadáveres ao longo da vida do que um médico legista mediano.
Não sabemos muita coisa a respeito do operador da Agência de Detetives Continental. O homem não tem nome, nem sentimentos e nem muita moral; não se importa, por exemplo, de armar uma cilada para um detetive corrupto para não ter que sujar o nome da agência, e suporta heroicamente as investidas de uma garota "bela como o diabo, e duas vezes mais mortal", quando qualquer homem com sangue nas veias já seria um marionete nas mãos dela. Os contos se passam em São Francisco, entre bares clandestinos da lei seca que até a polícia frequenta para beber, espeluncas chinesas que servem de fachada para negócios escusos, entre homens violentos e cruéis e mulheres dissimuladas e fatais. Diga-se de passagem, o conceito de "mulher fatal", nas histórias do Hammett, é muito mais literal...

Aqui em Pindorama, eu consegui achar duas coletâneas com os contos do detetive: O Grande Golpe, edição da L&PM Pocket, facinha de encontrar, e Continental Op, da Companhia das Letras, infelizmente esgotado (peguei na biblioteca do Centro Cultural). Não tem contos repetidos entre ambos, então se você realmente gostar de um, vale a pena procurar o outro. Estrelado pelo Continental Op, tem também o Seara Vermelha (não confundam com o do Jorge Amado, POR FAVOR), um romance "longa metragem" fabuloso, do qual eu falo mais qualquer dia desses, e Estranha Maldição, que ainda não consegui encontrar pra ler.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Sono Eterno

Eu não sou muito de tietagens, mas se tem um cara de quem eu sou fã, mesmo, que me faria gritar histericamente se o visse passando na rua, é o Raymond Chandler. Claro que parte da minha histeria seria por que ele está morto há mais de 50 anos, e seria bem esquisito vê-lo passando na rua.

O Sono Eterno é o primeiro romance "longa-metragem" do Chandler, e a primeira aparição do Philip Marlowe também - o detetive "durão", que, "no fundo", é "um sentimental" (palavras dele próprio) - que vinha sendo refinado nos contos, em outros personagens, ao longo de muitos anos. Vou falar um tremendo clichê agora, que vi escrito em algum lugar, mas que é a mais pura e tridestilada verdade: se Dashiell Hammett tem o crédito por ter inventado as histórias de detetive hardboiled, é do Marlowe o mérito de tê-las elevado à categoria de arte. Seus romances são cheios de nuances e subnuances, detalhes tão importantes à história quanto ao mistério em si, os personagens são pintados em diversos tons de cinza e não são estereotipados - se hoje, o detetive "durão mas sentimental" é um clichê, foi por que Chandler inventou este clichê.

Mas a história. Marlowe é contratado pelo General Sternwood, um velho entrevado, mas que já foi um osso bem duro de roer em seu tempo. Ele quer que o detetive investigue uma chantagem contra Carmen, sua filha mais nova, praticamente uma Paris Hilton dos anos 40, que não consegue sossegar a periquita. Vivian, sua outra filha, tem a certeza que Marlowe está investigando o desaparecimento de seu marido, Rusty Regan; ele não desmente. Seguindo a pista do chantagista, Arthur Geiger, descobre que ele aluga livros pornográficos (lembrem-se que naquele tempo não tinha redtube), tanto pelo lucro imediato quanto como investimento de longo prazo, para chantagear seus clientes depois. Seguindo-o até sua casa, ouve tiros; invade o local e descobre o corpo de Geiger com três balas, e Carmen, completamente nua e drogada, na cena do crime. Por mais que eu tenha prazer em estragar a leitura de vocês, o livro é tão complexo que eu não poderia resumi-lo sem reescrever a história toda, então deixo vocês por aqui. Mas já adianto que tem mais assassinatos, mais Carmen Sternwood pelada, gays e héteros dispostos a cometer crimes passionais, intervenções de um figurão do crime organizado, e que a verdadeira trama da história gira em torno do desaparecimento de Rusty Regan.

Tem dois filmes baseados no livro, um de 1946 e outro de 1978. Não tenho nenhuma intenção de ver o de 78, porque eu acho que todo mundo era feio nos anos 70. Falemos da versão de 46.
Apesar do original ser genial, e de ter o Humphrey Bogart e a Lauren Bacall como estrelas (o William Bonner e a Fatima Bernardes dos anos 40), o filme é muito, muito fraquinho. Parece um resumo mal-feito do livro para um trabalho de escola, a ação engasga, as situações são forçadas. No filme, Marlowe é muito, mas MUITO mais mulherengo do que nos livros, e olha que ele já é bem sem-vergonha no romance. A mulherada parece sob efeito de ferormônios hardcore na presença do cara, ou seja lá o que for; sei que se alguém engarrafar esse lance e vender vai ficar rico. Nos livros, pelo menos, ele ainda se dá ao trabalho de umas cantadas antes que elas saiam abrindo as pernas. E mesmo apesar disso, eles cortam toda a sacanagem do livro; a própria Carmen não tira a roupa em nenhum momento, a chantagem gira toda em torno das fotos dela benlôca de dorgas. Os livros pornográficos e a pederastia de Geiger não ficam nem subentendidos. A gente até entende, tinha o Hays Code e panz, mas ainda assim, a perversão entra em pontos cruciais da trama e é bem frustrante que o filme todo seja quase tão inocente quanto o Disney Channel.

Eu honestamente não recomendo o livro. Não se você tiver um emprego, família, uma casa pra cuidar ou qualquer coisa na vida que não possa ser negligenciada, porque você não vai querer parar de ler enquanto não terminar.

Como funciona esse lance?

Então, meus queridos, eu andei matutando sobre a disponibilidade de tempo que tenho e o que quero postar por aqui. Pra gente organizar um pouco a coisa, e pra eu não ficar procrastinando demais também, vamos combinar então o seguinte:
Todas as TERÇAS e QUINTAS tem post sobre um livro; dependendo de como eu estiver de tempo, pode rolar um terceiro post. Não que eu leia três livros por semana (se bem que se rolar tempo...), mas tem todos os outros encostados aqui na minha estante mental, sobre os quais eu quero falar, mas não tenho muito com quem.
Todos os SÁBADOS tem um post de opinião, sobre algum assunto vagamente relacionado com literatura e arte. Ou não. Sabadão vai ser meu dia livre pra postar sobre o que eu bem entender, e se você não curtir, bem, tem pelo menos uns 200 milhões de outros blogs out there.

Agora cês me dão licença, que hoje tem post e eu não escrevi uma linha.

domingo, 19 de setembro de 2010

King Shelter, o alter-ego policial de Pagu

Esse ano comemora-se o centenário de Pagu, a Patrícia Galvão, conhecida como "musa do modernismo". O título, eu acho, se deve muito mais ao seu bocão pintado de vermelho e à sua atitude punk do que à sua obra, esparsa e pouco consistente. Além do que, quanta gente você conhece que leu Pagu? Você, amigo leitor, olha no meu olho e não mente, VOCÊ já leu alguma coisa da Pagu?

Dando a real, eu mesma só bati o olho em meia dúzia de poemas aqui e ali, talvez um ou outro texto em prosa, mas nunca me animei a ler, por exemplo, o famigerado Parque Industrial, de 1933, dito como "primeiro romance proletário brasileiro". O critério para estabelecer este como "primeiro", aparentemente, era que necessariamente se falasse de operários de fábrica e só de operários de fábrica, e que fosse um romance, já que ignoraram sumariamente os excelentes contos do Brás, Bexiga e Barra Funda, de 1928, e toda a tradição realista brasileira, que tem protagonistas pobres desde mil oitocentos e tralalá. E não vou nem mencionar o Memórias de um Sargento de Milícias, primeiro romance do malandro carioca, escrito lá atrás em 1853. Talvez a questão não seja a classe, mas a consciência de classe, e nesse caso esse é definitivamente o primeiro romance comunista brasileiro. Mas eu diria que os proletários estão melhor representados em livros anteriores.

Enfim. Mérito à parte, outro dia desses eu vi ali na Mario de Andrade (a biblioteca central de São Paulo) uma estante separada só com livros da Pagu. Aliás, já que tocamos no assunto, vocês já foram à Mário de Andrade depois da reforma? Reabriram a circulante agora, e tá uma coisinha linda de deus. Mobília nova, mais iluminação, bibliotecárias gatchênhas (juro, pelo menos duas, e olha que eu nem curto muito a fruta)... Logo na entrada tem algumas estantes - displays talvez fosse um termo melhor - com alguns livros organizados por tema, tipo vestibular, ganhadores do prêmio X, etc. E nessas, resgatando o assunto, tinha uns livros da e sobre a Pagu, por causa do centenário e panz. Eu passei os olhos sem grande interesse, até topar com um título que, apesar da capa discreta, saltava aos olhos: Safra Macabra.

O bicho parecia completamente deslocado ali, entre títulos que evocavam a classe operária, o feminismo e outras pataquadas politicamente corretas. Segundo o que as orelhas me contaram, eram meia dúzia de contos escritos a toque de caixa e a toque de cash, publicados lá atrás nos anos 40 numa revista chamada Detective, editada por ninguém menos que Nelson Rodrigues - ele mesmo, o monstro, o chauvinista, o reacionário. É difícil imaginar alguém mais estranho ao mundo de Pagu do que o anticomunista, o machista Nelson Rodrigues, o cara que seu ex-marido, Oswald de Andrade, chamava de "pervertido mal-educado". Eu nem vou comentar sobre a parte do "pervertido" e a suposta liberação sexual que o modernismo pregava, por que isso dava assunto pra todo um novo blog inteiro. Nelsão, pelo menos, era honesto consigo mesmo. Pagu e aquela galera, na real, eram um dos motivos que fazia Rodrigues apoiar a ditadura; toda essa a intelligentsia brasileira era da classe dominante, e ele não conseguia acreditar em qualquer bem que eles pudessem fazer aos pobres de verdade.

Não estou aqui para delatar a contradição alheia, apesar disso me dar certo prazer. As pessoas são múltiplas, são formadas por diversas camadas complexas, alimentam crenças que se chocam entre si. Isso é natural. Não chamem de hipocrisia. 
Não falo a todos os meus leitores, claro; tenho certeza que muitos de vocês são adultos e bem conscientes, e a maior parte de vocês provavelmente nem liga muito pra política. Falo em especial a você, jovem cidadão que me lê agora. Você que já deve estar querendo me bater. Você que tem sido bem alimentado com alguma ideologia de esquerda, socialismo, amarquismo, whatever, e curte muito apontar tudo o que está errado com a humanidade, apontar os defeitos e as supostas hipocrisias dos outros. Seus heróis também se contradiziam. Eles também tinham que "se vender" em troca de um mínimo de condições para continuar vivendo em sociedade, e esse mínimo varia conforme a zona de conforto de cada um. Uns poucos talvez tenham conseguido manter absoluta coerência entre suas crenças e sua vida, e ao mesmo tempo manter o convívio em sociedade, necessário à propagação das suas idéias; eu só consigo me lembrar de Gandhi, na real, e olhe lá.


Enfim. Voltemos ao livro.

Os contos. O prefácio dizia que havia muita influência de Edgar Wallace, mas como tudo o que eu conheço dele é o King Kong, realmente não sei dizer. Pelo menos metade deles é estrelada por Cassira A. Ducrot, um jovem detetive da Sureté francesa, o Dupin da Pagu. A grande maioria se passa na velha e nobre Europa, entre castelos, casas de campo e cafés chiques em Paris, que Pagu, como aristocrata paulistana bem-nascida que era, conhecia muito bem e adorava. Há exotismo oriental, armas misteriosas, personagens estranhos, o pacote completo. As histórias puxam um pouco para o gênero horror, sem deixar de ser policiais. O linguajar é um pouquinho pedante demais pra me agradar, e a autora talvez se perca muito em descrições detalhadas, mas nada disso estraga o ritmo. Vale como curiosidade histórica, eu diria, e se você prefere, digamos Agatha Christie a Raymond Chandler. Se o amigo leitor tem um tempo para leitura muito limitado, e/ou se detesta esse estilo policial fantasioso, eu não recomendo não.


Tá aí. Em seis parágrafos, eu consegui escrever um inteiro sobre o livro em si. Objetividade: tinha, mas acabou.

sábado, 18 de setembro de 2010

O Talentoso Ripley (o livro)


A gente falou de Crime e Castigo e eu me lembrei do que é, na minha opinião, o Crime e Castigo que "deu certo". O Talentoso Ripley tem vários paralelos com o livro do Dostô: um assassinato por dinheiro, justificado pelo assassino a si próprio como um "eu mereço mais". Mais um crime imprevisto, para eliminar uma testemunha. O protagonista é perturbado, pela culpa em um, pela paranoia em outro, enquanto a polícia segue em seus calcanhares. A diferença é que em O Talentoso Ripley, o final não me frustra. E deu filme. Não disse que dava filme?

(Não venham com mimimi de "literatura menor", "de entretenimento" e essa pataquada toda. Se você acha que não dá pra comparar um clássico da literatura universal com um livro policial, eu honestamente quero que você se foda. O blog é meu, mané. Aliás, já aviso que policial é o meu gênero mais preferido ever, e se você não gosta, é melhor nem começar a ler este blog.

Aliás, se você também não gosta de spoilers, é melhor nem começar a ler este blog.)

Vocês devem ter visto o filme, já. O livro, da Patricia Highsmith, é na verdade o primeiro da saga do Ripley, que eventualmente acaba virando uma enciclopédia criminosa: chantagem, estelionato, falsificação, assassinato, se o cara não faz o serviço certamente conhece quem faz. Nos livros, o cara é um filhodaputa gelado, sem nenhum arrependimento, bem o tipo de vilão que eu curto. A paranoia dele nesse primeiro é por puro medo e inexperiência na vida criminosa, nunca por remorso. No filme é tudo um pouco diferente: por exemplo, no livro, Ripley mata Dickie premeditadamente, já com a intenção de se passar por ele; no filme, o assassinato ocorre no calor do momento, e é meio que sem querer que ele percebe que pode se passar pelo rapaz. No filme, rolam uns moralismos aí que não rolam no livro, e no fim, em vez de se ver condenado à culpa e à solidão, Ripley herda toda a grana de Dickie e vê o começo de uma nova e maravilhosa vida amanhecendo à sua frente. Em suma, no livro, o crime compensa, e tanto compensa que rende cinco outros livros.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Crime e Castigo






Começar aqui com um desses classicões que todo mundo fingiu que leu: Crime e Castigo. Sério, gente, não é pecado nenhum não ter lido Crime e Castigo, ou qualquer coisa do Dostoiévski, for that matter. Não tou aqui pra justificar a falta de leitura da galera, e muito menos pra disseminar a erudição de orelhada. Me explico.

Pra começar: o livro é grande. É tudo muito grande, o que me faz pensar que o twitter não deve ter dado muito certo na Rússia. Eu tenho pra mim que russo adora um livro grande por que o país é grande, veja bem. Imagina você, moscovita, pegando a Transiberiana pra visitar os parentes em, sei lá, Vladivostok. Eu não sei quanto tempo é de viagem, colega, mas é muito tempo. Você tem que ter alguma coisa pra fazer no trem, e como naquele tempo não tinha celular com televisão, você lia. Era estrada suficiente pra acabar com todo um lote de revistinhas de sudoku, tricotar uns quatro casacos de malha, e ler os dois volumes de Crime e Castigo.

Enfim, voltemos ao assunto. Eu dizia que não era pecado não ter lido Crime e Castigo, primeiro, por que o livro é grande - quer dizer, a gente pode ter todas as boas intenções do mundo, mas com as demandas que a vida traz, é difícil manter a erudição com um monte de roupa no tanque pra lavar. Eu li o livro há dez anos, quando ainda não tinha nem 10% de toda a responsa que tenho agora, e ainda assim demorei à beça pra terminar. Segundo, por que as traduções que a gente tinha, até pouco tempo atrás, eram bem pouco atraentes. Faz o que, uns cinco, sete anos que saíram as traduções direto do russo pela editora 34? As que a gente tinha antes - aquelas que eu li, que teu professor de literatura leu, e que teu ex-namorado metido a intelectual jurou que leu - vinham do francês, uma tradução da tradução. Os textos eram mais pedantes e mais certinhos, mal deixavam transparecer que o autor, tal como os próprios personagens, era um fodido, um perturbado, um coitado meio maluco. Enfim. Se você, leitor, se decidir a ler a obra agora, eu recomendo fortemente pegar a tradução nova. Além de tudo a coleção inteira está bem bonita, com ilustrações de artistas plásticos de nome; as do Crime e Castigo são gravuras do Evandro Carlos Jardim.

Mas de volta ao livro.

Vocês sabem, mais ou menos, a história, não? A coisa não está tão fresca na minha memória, então, se eu falar alguma besteira muito grande, me corrijam. Tem o Raskolnikov, moleque, estudante e cheio de dívidas, tem a velhinha agiota que ele mata, tanto pra ficar com a grana quanto por que ele se acha no direito, e tem a Sônia, a menina que sustenta a família se prostituindo, que é a pessoa mais sã no livro todo. A ação se passa em São Petersburgo, mas 90% do livro se passa dentro da cabeça do Raskolnikov. O garoto se vê meio como um justiceiro, quase como um anjo vingador, alguém que livra o mundo de um ser desprezível, e usa seu dinheiro para praticar o bem - em primeiro lugar a si próprio, afinal, farinha pouca meu pirão primeiro, né não? A maior parte da bravata pós-crime é culpa mal disfarçada, e em parte é essa culpa que acaba deixando a polícia desconfiada. A cena do crime em si também está bem longe de configurar um crime perfeito - afinal ele não assistia CSI, e deixa um monte de pistas, que a polícia vai seguindo. E mais ou menos nesse ponto da história eu mesma acabei cometendo um crime...

Crime: espiar o final no fim do livro. Castigo: frustração. SPOILER ADIANTE.

Pois nessas de vai-não-vai, prende-não-prende, eu já estou tão seduzida pelo diálogo interno do guri Raskolnikov que acho mesmo que ele devia ter matado a velha; matasse quinze velhas, se preciso fosse. Mas vejo no final do livro que ele acaba, mesmo, preso. Na real, eu fui burrinha e não percebi que o próprio título trazia o spoiler: crime e CASTIGO, não é? Mas sabem, eu tenho essa tendência a torcer um pouquinho pelo criminoso. Curto muito esse lance de assassinato, ainda mais quando é esperto, bem feito, todo redondinho, deixando nenhuma pista ou só aquelas pistas ótimas que confundem os detetives. Mas o fato é que Raskolnikov is no Moriarty, tampouco Crime e Castigo é um romance policial. O livro foi escrito por um moralistão, um cara perturbado demais, culpado demais, pra ser capaz de deixar barato um crime desse tamanho sem um castigo de acordo.

O que não me impede de, na minha pretensão, propor um fim alternativo para a história. No meu final, em vez de se ver nos campos gelados da Sibéria, com a coitada da Sônia, conformada, o acompanhando, Raskolnikov se vê, com toda a grana de todas as velhinhas usurárias da Rússia, numa praia do Rio de Janeiro, uma mulata do Sargentelli em cada braço e nenhuma culpa no cartório. Claro que pra isso a gente teria que mudar o título. Eu proponho Crime e Fuga Espetacular Para os Trópicos.

Dava até filme, vai dizer que não.

Do que se trata

Este blog, se durar - eu tenho um vergonhoso background de infanticídios em série de blogs - vai tratar, grosso modo, de literatura. Coisas que eu li, coisas que eu tenho lido, coisas que estou para ler, coisas que escrevo. Impressões sobre o que as outras pessoas escrevem, ou deixam de escrever. E mais uma ou outra coisa que eu achar que caiba.

É mentira. Só fiz esse blog por que o twitter não me deixa ser prolixa, e eu tenho essa necessidade visceral de ser prolixa o tempo todo de vez em quando.